Tem gente que guarda muita informação estranha na cabeça. Quem foi o ganhador do Oscar de 1986, quantos degraus há na escada, a previsão do tempo para quarta-feira, etc. Admiro quem consegue lembrar naturalmente esse tipo de coisa, eu já não tenho a mesma facilidade. Minha memória é ruim, péssima pra dizer a verdade. Tenho a impressão de ter esquecido uns 70% do que aprendi na escola, sem muito remorso de dizer. Mas esse meu esquecimento vai além, rompe a fronteira perigosa das senhas, telefones e do que aconteceu ou deixou de acontecer ontem.
Mesmo falha, não considero meu tipo de memória algo inútil. Há nela uma seletividade bizarra da qual me orgulho. Confesso não lembrar qual foi o time vencedor o brasileirão do ano passado, mas sei que na casa de Amone os talheres são guardados na gaveta da direita do móvel de madeira. Sei também que Clarissa adora mostarda, que minha avó sempre toma café às três da tarde, que Daniel gosta de cobertura de kiwi no sorvete, minha mãe não bota açúcar no chá, Alisson não come carne de boi, Cecília tem alergia à lactose e Renata acha miojo de legumes o melhor entre todos.
Isso pra limitar os exemplos aos hábitos alimentares, que não são exatamente o tipo de informação que se costuma registrar. Isso não significa que eu seja a pessoa mais atenciosa do mundo, pelo contrário, às vezes eu até deixo de lado aquilo que realmente importa porque me atenho a esses detalhes estranhos. Não é uma obsessão, não é a meticulosidade chata dos virginianos, é só que meu banco de dados, ainda que incompleto e desorganizado, é composto muito mais das coisas que eu sei sobre as pessoas do que seria considerado normal, ou mesmo saudável.
É comum, no meio de uma conversa, que alguém me pergunte: “Você lembra de fulano?” e eu responda prontamente que não lembro, porque realmente não lembro. Simplesmente deleto algumas pessoas para que outras, as que realmente importam, venham a ocupar esse espaço. Isso pode ser bom ou ruim, dependendo do ponto de vista. E talvez seja por isso tão divertido ouvir dois recém-conhecidos a discutir “Sim, mas onde exatamente fica a sua casa?”, “Virando a direita na rua tal, ali perto do posto, sabe?”. Pra mim esse tipo de indicação não faz o menor sentido, porque sei que vou esquecer em breve. A não ser que eu vá de fato lhe visitar, saber onde é sua casa não me diz nada sobre você.
De alguma maneira, ao menos na minha lógica, tudo que eu pergunto sobre alguém é relevante. Fazer a mesma pergunta duas vezes eu considero uma falha mortal, mesmo que a cometa com mais freqüência que o aceitável, porque significa que aquilo que me foi dito não foi registrado, passou batido. Porque as pessoas são como livros, sobre os quais eu vou me aprofundando, reconhecendo os traços do autor, amando-os por tudo que são. Perguntar algo que eu já deveria saber é como voltar uma página, um esforço necessário, mas que me custa tempo.
Talvez para alguns seja fácil fazer ambos ao mesmo tempo, lembrar das coisas do mundo e também saber que sicrano reparte o cabelo pro lado esquerdo. Maluquice ou não, comum ou não, essa minha habilidade, se é que posso chamá-la assim, nunca foi algo que eu tenha cobrado dos outros. É comum, isso sim extremamente comum, que alguém que me conheça há muito tempo pergunte distraidamente “E você, vai tomar o que? Coca ou guaraná?” e eu responda automaticamente (pela milésima vez) “Não, brigada, eu não tomo refrigerante” ao que se sucede um horrorizado “Não? Mas por quê?” ou um eventual “Ah, é mesmo, tinha esquecido que você não gosta”.
Esquecem desse detalhe o tempo todo, nunca me magoei por isso. Que eu esqueça algo do tipo sobre alguém é que me faz sentir mal. Pra mim importa, tudo importa, importa qualquer lapso de minha parte, importa conhecer e manter vivo na memória cada fragmento do mosaico que torna as pessoas especiais.
Isso porque é verdade que não ligo pro esquecimento dos outros, mas há também uma felicidade indescritível quando alguém do outro lado da mesa se antecipa a mim e responde “Ela não toma refrigerante” ou ainda quando eu era criança em plena festa de aniversário alheia aquela senhora me sorria e antecipava até meu pensamento “Tem suco pra você na geladeira”. Momentos assim eu gosto de causar, esse tipo de pessoa eu gostaria de ser.
Então: Oi, meu nome é Olga, e eu não tomo refrigerante porque não gosto do gás.
E agora você sabe algo realmente relevante sobre mim. (ou não...)