quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Colapso

Números, sozinhos, não significam nada. Já as quantidades, o passar do tempo e as distâncias podem ter mais de um sentido dependendo de como você os encara. Há inclusive uma música do Biquíni Cavadão que fala disso: “Quanto tempo demora um mês?” e, como o compositor mostra, o tempo não é o mesmo para todos, assim como tudo o mais que pode ser medido ou contabilizado. Dessa forma o sentido que qualquer número possa vir a ter só pode ser extraído por meio de comparações. Para uma mente ociosa como a minha estabelecer relações desse tipo acaba se tornado uma espécie de passa tempo. Então, se estiver disposto, me acompanhe:

257 crianças palestinas mortas.
São duas centenas, cinco dezenas e sete tipos diferentes de rostinhos infantis sendo consumidos pelos vermes nesse exato momento. É muito mais do que todos os meninos e meninas que eu conheço juntos. Uma média de quinze por dia. Assim, contando a partir do primeiro do ano, se a cada manhã apenas uma delas morresse demorariam cerca de oito meses e quatorze dias para que a última viesse a falecer. São quinhentos e quatorze olhos que agora já não brilham mais. Filhos, netos, sobrinhos, primos e irmãos que deixaram de existir.

E mesmo com todo o meu esforço eu não conseguiria traduzir o que esse número significa. Porque ele aumenta enquanto escrevo e, na verdade, eu não conheço a dor de uma mãe que vê seu filho morrer. E ainda que conseguisse essa proeza, para alguns, ele jamais deixaria de ser somente isso: um número. Mais um entre tantos que são anunciados pela repórter com a mesma naturalidade com que esta informa a previsão do tempo, aquela notícia que você escuta, diz: “Que pena”, ou simplesmente não diz nada, e continua a viver.

Durante duas semanas assisti diariamente a seis telejornais, três locais e três nacionais de emissoras diferentes e, se é que posso dizer, acompanho esse conflito desde o primeiro dia. Conflito, bonito eufemismo para banho de sangue. Eu vi e ouvi tudo sem me abalar, hipnotizada e protegida pela própria racionalidade, decepcionada com a lentidão das decisões de um conselho de segurança sem moral alguma, revoltada com o cinismo dos líderes de estado e de certa forma evitando pensar no quão conveniente é uma guerra só ter estourado após as eleições presidenciais americanas.

Ainda assim, apesar de sempre tensa, estava inteira. Prestes a vir para Sobral lembrei que nessa casa não temos uma televisão, ou pelo menos não algo que mereça esse nome, e que, portanto, daqui em diante tudo que acontece em Gaza pareceria tão distante quanto de fato é. Mas como eu disse, distância também é um conceito relativo. Desse lado do Atlântico não há estilhaços de bomba que me atinjam, mas talvez nem fosse preciso. O que me atingiu, que me fez entrar em colapso, foi isso:

“A equipe de resgate "encontrou quatro crianças pequenas ao lado das suas mães mortas em uma das casas. Elas estavam fracas demais para se levantarem sozinhas. “

Depois de saber de tantas mortes foram os vivos que me fizeram cair em desespero. Nada de fotos, imagens ou sons, só palavras. E no silêncio dessa sala eu gritei de dor e chorei até quase sufocar. Chorei por tudo, por saber que os que se foram morreram por nada, que há ainda aqueles que sofrem e sofrerão sem poderem sequer fugir ou receber abrigo, ou mesmo comida, água, remédios...poderia até dizer que chorei por todos os dias de combate que ainda virão, mas não, não foi só por isso. O que me fez perder a razão foi perceber que, naquele momento, chorar era tudo que eu podia fazer.

E enquanto lia os comentários consegui me senti pior ao ver se esvair a minha última doce ilusão, a de que todos os que não ganham diretamente com essa guerra estúpida são contra ela. Ledo engano.

“Qui, 08/01/09 19:32 ginzel, ginzel@estadao.com.br
Essas crianças nunca terão a chance de ganhar qualquer prêmio pois elas, quando crescem, costumam vestir uma roupinha de dinamite e explodir dentro de onibus e lojas, isso apoiado pelos próprios pais, pelo hamas, pelo hezbolah, pelo Irã.”


Isso, meus amigos, talvez justifique tudo. Talvez seja certo julgar os filhos pelos pecados dos pais, talvez seja sábio matar para evitar mortes, talvez o que vemos agora não seja mesmo terrível, uma vez que só o holocausto o foi. Talvez, enfim, esteja tudo certo. Eu mesma já não sei, para mim a lógica morreu 257 vezes e a esperança está fraca demais para se levantar sozinha.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Relevância

Tem gente que guarda muita informação estranha na cabeça. Quem foi o ganhador do Oscar de 1986, quantos degraus há na escada, a previsão do tempo para quarta-feira, etc. Admiro quem consegue lembrar naturalmente esse tipo de coisa, eu já não tenho a mesma facilidade. Minha memória é ruim, péssima pra dizer a verdade. Tenho a impressão de ter esquecido uns 70% do que aprendi na escola, sem muito remorso de dizer. Mas esse meu esquecimento vai além, rompe a fronteira perigosa das senhas, telefones e do que aconteceu ou deixou de acontecer ontem.

Mesmo falha, não considero meu tipo de memória algo inútil. Há nela uma seletividade bizarra da qual me orgulho. Confesso não lembrar qual foi o time vencedor o brasileirão do ano passado, mas sei que na casa de Amone os talheres são guardados na gaveta da direita do móvel de madeira. Sei também que Clarissa adora mostarda, que minha avó sempre toma café às três da tarde, que Daniel gosta de cobertura de kiwi no sorvete, minha mãe não bota açúcar no chá, Alisson não come carne de boi, Cecília tem alergia à lactose e Renata acha miojo de legumes o melhor entre todos.

Isso pra limitar os exemplos aos hábitos alimentares, que não são exatamente o tipo de informação que se costuma registrar. Isso não significa que eu seja a pessoa mais atenciosa do mundo, pelo contrário, às vezes eu até deixo de lado aquilo que realmente importa porque me atenho a esses detalhes estranhos. Não é uma obsessão, não é a meticulosidade chata dos virginianos, é só que meu banco de dados, ainda que incompleto e desorganizado, é composto muito mais das coisas que eu sei sobre as pessoas do que seria considerado normal, ou mesmo saudável.

É comum, no meio de uma conversa, que alguém me pergunte: “Você lembra de fulano?” e eu responda prontamente que não lembro, porque realmente não lembro. Simplesmente deleto algumas pessoas para que outras, as que realmente importam, venham a ocupar esse espaço. Isso pode ser bom ou ruim, dependendo do ponto de vista. E talvez seja por isso tão divertido ouvir dois recém-conhecidos a discutir “Sim, mas onde exatamente fica a sua casa?”, “Virando a direita na rua tal, ali perto do posto, sabe?”. Pra mim esse tipo de indicação não faz o menor sentido, porque sei que vou esquecer em breve. A não ser que eu vá de fato lhe visitar, saber onde é sua casa não me diz nada sobre você.

De alguma maneira, ao menos na minha lógica, tudo que eu pergunto sobre alguém é relevante. Fazer a mesma pergunta duas vezes eu considero uma falha mortal, mesmo que a cometa com mais freqüência que o aceitável, porque significa que aquilo que me foi dito não foi registrado, passou batido. Porque as pessoas são como livros, sobre os quais eu vou me aprofundando, reconhecendo os traços do autor, amando-os por tudo que são. Perguntar algo que eu já deveria saber é como voltar uma página, um esforço necessário, mas que me custa tempo.

Talvez para alguns seja fácil fazer ambos ao mesmo tempo, lembrar das coisas do mundo e também saber que sicrano reparte o cabelo pro lado esquerdo. Maluquice ou não, comum ou não, essa minha habilidade, se é que posso chamá-la assim, nunca foi algo que eu tenha cobrado dos outros. É comum, isso sim extremamente comum, que alguém que me conheça há muito tempo pergunte distraidamente “E você, vai tomar o que? Coca ou guaraná?” e eu responda automaticamente (pela milésima vez) “Não, brigada, eu não tomo refrigerante” ao que se sucede um horrorizado “Não? Mas por quê?” ou um eventual “Ah, é mesmo, tinha esquecido que você não gosta”.

Esquecem desse detalhe o tempo todo, nunca me magoei por isso. Que eu esqueça algo do tipo sobre alguém é que me faz sentir mal. Pra mim importa, tudo importa, importa qualquer lapso de minha parte, importa conhecer e manter vivo na memória cada fragmento do mosaico que torna as pessoas especiais.

Isso porque é verdade que não ligo pro esquecimento dos outros, mas há também uma felicidade indescritível quando alguém do outro lado da mesa se antecipa a mim e responde “Ela não toma refrigerante” ou ainda quando eu era criança em plena festa de aniversário alheia aquela senhora me sorria e antecipava até meu pensamento “Tem suco pra você na geladeira”. Momentos assim eu gosto de causar, esse tipo de pessoa eu gostaria de ser.

Então: Oi, meu nome é Olga, e eu não tomo refrigerante porque não gosto do gás.

E agora você sabe algo realmente relevante sobre mim. (ou não...)